Tem sido observado por fitopatologistas que sempre numa cultura uma doença domina a cena numa safra. Por exemplo, em soja [Glycine max (L.) Merr] após a safra 2003/04 no Rio Grande do Sul, a ferrugem asiática da soja, casado pelo fungo basidiomiceto Phakopsora pachyrhizi Sydow & Sydow, tem sido a doença dominante. Nessa situação tem sido difícil quantificar a intensidade das demais doenças que normalmente ocorrem nessa cultura. Porém, como a ferrugem surge mais tarde no ciclo da soja, tem sido fácil a diagnose e a quantificação da antracnose causando desfolha inicial na soja (Reis et al. .2021).

Fato marcante ocorreu na safra 2021/22. Devido à seca, causando prejuízo na soja semeada na época normal não foi detectado tanto sintomas/sinais da ferrugem bem como a presença de esporos no ar (Aerobiologia). Na semeadura em dezembro, com a regularização da frequência e volume das chuvas, houve melhor desenvolvimento da soja, porém, também na ausência da ocorrência da doença dominadora da cena a ferrugem.

Nos experimentos de controle de doenças da soja com fungicidas, conduzidas no campo experimental do Instituto Agris, observou-se um efeito de alguns tratamentos fungicidas em manter a área foliar verde por mais tempo e reduzindo a desfolha. Lembro que como não foi detectada a presença da ferrugem, tentou-se inicialmente explicar o fenômeno pela presença de efeito, nutritivo, ou ‘verde’ e etc., de alguns fungicidas na ausência de doença (s). Nesse sentido, lembra-se que o mancozebe pela presença do manganês (22%) em sua composição aumenta o teor de clorofila na folhagem da soja (Reis et al., 2021) e de compostos ou produtos químicos com efeito estimulante no crescimento e desenvolvimento de espécies vegetais como as estrobilurinas (KÖHLE et al., 2002).

A redução da área foliar sadia e a desfolha foi causada por epidemia do crestamento de cercospora da soja, causado por Cercospora kikuchii (Matsumoto & Tomoyasu) Gardner.

Portanto, nessa safra 2021/22, nessa situação, a doença que dominou a cena, na ausência da ferrugem, foi o crestamento de cercospora. Portanto, o efeito da aplicação de fungicidas em manter a área foliar sadia por mais tempo e retardando a desfolha foi o efeito sobre C. kikuchii.

A primeira referência do crestamento de cercospora foi feita em 1921, por Susuki, no Japão, tendo atribuiu como causa da doença, fatores climáticos. Mais tarde, Matsumoto e Tomoyasu, também no Japão, demonstraram que o agente causal era um fungo, que o descreveram como Cercosporina kikuchii, após ter R. Kikuchi encontrado o mesmo organismo em sementes de soja em 1922. Nos Estados Unidos, Gardner constatou doença semelhante em sementes de soja em 1924 e o primeiro relato da doença no Brasil foi feito por Gomes em 1963 (Gomes, 1966).

Etiologia. O agente causal do crestamento de cercospora é um fungo pertencente à Classe dos Deuteromicetos, Ordem Moniliales, Família Dematiaceae e Gênero e espécie Cercospora kikuchii (Matsumoto & Tomoyasu) Gardner. Em média os conídios medem 210 x 3,3 µm e com 2 a 49 septos por esporo (Fig. 1).

Figura 1. Frutificação de Cercospora kikuchii e detalhe de conidióforos e conídios.

Hospedeiro. Até o momento desta publicação, o único hospedeiro conhecido é a soja. Sintomatologia: Em folíolos surge como ‘arroxeamento’ seguido de necrose (morte dos tecidos) (Fig. 2).

Figura 2. Sintomas de ‘arroxeamento’ de folhas e folíolos causados pelo parasitismo de
Cercospora kikuchii em soja.

Em plantas – queda das folhas severamente atacadas, inicialmente os pecíolos se mantém na planta e com o passar do tempo, caem.

Em pecíolos, hastes e vagens – manhas pequenas, irregulares em forma, de coloração avermelhada (Fig. 3).

Figura 3. Sintomas do crestamento de cercospora em hastes, vagens e sementes.
Figura 4. Mancha púrpura de sementes colonizadas por Cercospora kikuchii (Origem foto: Saran,
2021).

Em sementes. Em grãos e sementes, ossintomas apresentam-se pela alteração da coloração do tegumento tornando-se avermelhado ou purpúreo e podendo atingir os cotilédones.

Desses sintomas decorre o outro nome comum da doença ‘mancha púrpura’ da semente de soja (Fig. 4).

Tem sido demonstraram que a ‘mancha púrpura’ não tem efeito negativo sobre a qualidade da semente (Henning et al., 1981).

Transmissão. É o retorno do fungo da semente (cotilédones) infectada via lesões cotiledonares (Fig. 4) após a emergência da plântula. Ver transmissão semente-cotilédone Figura 5.

Figura 4. Lesões cotiledonares causadas por Cercospora kikuchii.
Figura 5. Fases do desenvolvimento do crestamento de cercospora em soja.

Fontes de inóculo. Sementes infectadas (Fig.6) introduzindo o fungo na área cultivada e
restos culturais, fase saprofítica.

Figura 6. Sintoma de mancha púrpura da semente e desenvolvimento de Cercospora kikuchii em meio de cultura.

Restos culturais. Resto cultural pode manter o fungo ativo poro até 35 meses (Reis et al.,
2011) até a completa decomposição ou mineralização, deixando de ser fonte de inóculo. O fungo agente causal não produz estrutura de dormência ou de repouso.

Disseminação. O fungo descrito no Japão em 1921 e daí para todos os continentes onde se cultiva a soja sempre acompanhando a semente. Outro mecanismo é o transporte do inóculo (esporos do fungo) – esporos secos, removidos dos conidióforos e transportado no ar pelo vento.

Condições climáticas e o processo infeccioso. A temperatura mais favorável ao desenvolvimento da doença é na faixa de 23 – 27ºC. As folhas podem ser infectadas com infecção latente nos estádios vegetativos, permanecendo assim até os estádios R5-R6 quando os sintomas se tornam evidentes (Ward-Gauthier et al., 2015).

Medidas de controle.

Rotação de culturas com gramíneas considerando que o tempo de decomposição do resto
cultural da soja, ou tempo de manutenção do fungo viável na lavoura, é de 35 meses (Reis et al., 2011).

Controle químico.

Tratamento de sementes. Embora o fungo seja transmitido por sementes e considerando
o cultivo da soja em monocultura e plantio direto o uso de fungicidas em sementes não é eficiente. Além desse fato, não se encontrou relato científico de que o fungicida aplicado à semente ‘mata’ o fungo que coloniza os cotilédones, evitando assim sua esporulação em lesões (Fig. 7).

Figura 7. Ilustração de semente tratada com fungicida, retenção do tegumento, transmissão
via lesão cotiledonar sem comprovação de sua erradicação.

Pulverização na folhagem. A aplicação de fungicidas tem como objetivo manter a área foliar sadia por mais tempo. Um dos nomes comuns da moléstia é ‘doença de final de ciclo’ por surgir a partir dos estádios reprodutivos.

Na Argentina foi relatada a presença de isolados de C. kikuchii resistentes à estrobilurinas e benzimidazol (Sautua et al, 2020) e demonstrado que no mínimo 65–90 mm de chuva durante os estádios R3–R5 são necessários para justificar a aplicação com alta probabilidade de aumento no rendimento como consequência do controle da doença (Carmona et al., 2011).

Referências

CARMONA, M.; SAUTUA, F.; PERELMAN, S.; REIS, E.M.; GALLY. M. Relationship between late season disease complex and rain in determining grain yield response to fungicide applications. Journal of Phytopathology 159:687-693, 2011

GOMES, J. C. Avaliação da incidência de mancha purpúrea da soja (Cercospora kikuchii) sob condições naturais de campo, nas variedades do Ensaio de Regionalização. I:. Súmula dos Trabalhos Fitotécnicos na Cultura da Soja, X Reunião, 1966.

HENNING, A. A.; FRANÇA NETO, J. de B.; COSTA, N. P. da. Avaliação dos efeitos de diferentes níveis de sementes com mancha purpura, sobre a qualidade fisiológica e sanitária das sementes. ln: EMBRAPA. Centro Nacional de Pesquisa de Soja (Londrina, PR), Resultados de pesquisa de soja 1980/81. Londrina, 1981 . p.290-294.

KÖHLE, H.; GROSSMANN, H.; JABS, T.; GERHARD, M.; KAISER, W.; GLAAB, J.; CONRATH, U.; SEEHAUS, K.; HERMS, S. Physiological effects os the strobilurin fungicide F500 on plants. In: DEHNE, H, W.; GISI, U.; KUCK, K. H.; RUSSELL, P. E.; LYR, H. (Ed.). Modern fungicides and antifungal compounds III. Andover: Intercept, 2002. p. 61-74.

MURAKISHI, H. H. Purple stain of soybean. Pytopathology 41:305-318. 1951. REIS, E. M.; BARUFFI, D.; REMOR, L; ZANATTA, M. Decomposition of corn and soybean residues under field conditions and their role as inoculum source. Summa Phytopathologica, v.37, n.1, p.65-67, 2011.

REIS, E.M.; REIS, A.C.; ZANATTA, M. Etiologia da morte e queda prematura de pecíolos basais da soja. Textos técnicos. Instituto AGRIS, Passo Fundo, RS, 2021.

SAUTUA, F.J.; DOYLE, V. P.; PRICE, P.P.; PORFIRI, A.; FERNANDEZ, P.; SCANDIANI, M.M.; MARCELO A. CARMONA. Fungicide resistance in Cercospora species causing cercospora leaf blight and purple seed stain of soybean in Argentina. Plant Pathology. V.1–17, 2020. DOI: 10.1111/ppa.13261

WARD-GAUTHIER, N.A.; SCHENEIDER, R.W.; CHANDA, A.; SILVA, E.C.; PRICE, P.P.; CAI, G.
Cercospora leaf blight and purpule seed stain. In; Compendium of soybean diseases and pests. Hartmann, G.L.; Rupe, J.C.; Sickora, E. J.; Domier, L.L.; Davis, J.A.; Steffey, K.L. (Eds.). The American phytopathology society, St. Paul, Minnesota, U.S.A. p. 37-41, 2015.

Autores: Erlei Melo Reis, Andrea Camargo Reis, Carla Gabriela Tolotti, Maria Eduarda Eilert, Maria Valeska Lima Soares, Mateus Zanatta

Fonte: Instituto Agris, Pesquisa e Consultoria Agrícola Ltda – Passo Fundo, RS

Foto de capa: Mauricio Stefanelo

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