Lineu Neiva Rodrigues, pesquisador da Embrapa Cerrados
Élvis da Silva Alves, bolsista de pós-graduação da Universidade Federal de Viçosa
Com uma área cultivada de aproximadamente 37 milhões de hectares, tipicamente em condições de sequeiro, e uma produtividade média nacional de 3,3 t/ha e produção total de 120,9 t/ha na safra 2019/2020, de acordo com dados da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab)1, o Brasil é o maior produtor de soja do mundo. Um estudo realizado pela empresa Agrosatélite e a Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Vegetais (Abiove)2 em 2020 mostrou que mais da metade da área cultivada com soja no País na safra de 2018/19 estava concentrada no Cerrado, bioma que responde por aproximadamente 45% da área agrícola nacional, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)3.
Apenas 11% das lavouras brasileiras de soja utilizam a irrigação4. Devido à elevada variabilidade das precipitações, que traz incertezas quanto à produção, tem-se observado, nos últimos anos, um aumento da área de soja irrigada no Cerrado brasileiro. Com cerca de 64% da área irrigada no Brasil5, que concentra aproximadamente 80% de todos os pivôs centrais instalados no País6, a região tem enfrentado sérios problemas de escassez hídrica em algumas de suas principais bacias hidrográficas. Se não for bem planejado, o crescimento da irrigação no Cerrado pode implicar no aumento de disputas pelo uso de água nas bacias hidrográficas, que já se encontram com baixa disponibilidade hídrica.
Nessa região, que apresenta, de maneira geral, carência de dados de solo, clima e água que possam subsidiar estratégias de desenvolvimento, é importante gerar informações que contribuam para a sustentabilidade da agricultura irrigada. Nesse sentido, também é importante desenvolver estratégias para reduzir a quantidade de água retirada dos mananciais pelos diversos usos, o que pode ser viabilizado por meio de um planejamento integrado de bacia hidrográfica que estabeleça estratégias efetivas para aumentar a eficiência dos diversos usos, principalmente da irrigação, que é a principal usuária.
Qualquer estratégia que busque melhorar a eficiência de irrigação deve priorizar o ajuste do manejo. Assim, é fundamental melhorar as estimativas da evapotranspiração atual da cultura (ETa), sendo necessário, para isso, considerar as especificidades das culturas e as características regionais para o desenvolvimento ou refinamento de coeficientes técnicos, a exemplo do coeficiente de cultura médio e basal e dos coeficientes de estresse hídrico da planta e do solo.
Outra forma de tornar o manejo mais eficiente é por meio da melhoria de modelos matemáticos desenvolvidos para o manejo. Dentre os modelos existentes, aquele proposto por Doorenbos e Pruitt7 que calcula a evapotranspiração potencial da cultura (ETc) por meio da relação entre a evapotranspiração de uma cultura de referência (ETo) e um coeficiente de cultura (Kc), pela sua simplicidade e facilidade de programação e de operacionalização, tem sido o mais utilizado. Entretanto, esse modelo não permite que os efeitos da transpiração e da evaporação direta da água do solo sejam individualizados.
Outras abordagens com grande potencial de aplicação são aquelas baseadas em metodologias que estimam a ETa por meio do cálculo individualizado da transpiração e da evaporação direta da água do solo (Es). A Es é um dos componentes do balanço hídrico mais significativo8. No entanto, é muito pouco estudada. Em um sistema produtivo, as perdas por Es são significativas. Klocke et al.9 observaram que a Es representou cerca de 30% da evapotranspiração de uma cultura de milho.
No manejo da irrigação, diversos modelos, com diferentes abordagens, possibilitam estimar a evapotranspiração da cultura (ET), separando a Es da transpiração (T). As diferentes abordagens geralmente consideram, no cálculo da Es, a influência da cobertura do solo, que pode ser calculada por meio do índice de área foliar (IAF) ou da percentagem de solo coberto (CC). Em estudo realizado comparando a Es em ambientes sombreados e não sombreados, Raz-Yaseef et al.10 observaram que os valores de Es foram, em média, o dobro nas áreas descobertas, quando comparados às áreas sombreadas.
Diante do expressivo crescimento da agricultura irrigada no Cerrado brasileiro e do aumento das disputas pelo uso de água, há necessidade de pensar a irrigação de maneira mais estratégica. Nesse contexto, é essencial desenvolver coeficientes técnicos de irrigação para as novas variedades de cultura e melhorar o manejo de irrigação na região do Cerrado, contribuindo para melhorar as estimativas da ETa, principalmente do componente Es.
Uma das iniciativas nesse sentido foi o estudo desenvolvido pela Embrapa em parceria com a Universidade Federal de Viçosa (UFV) com o objetivo de aprimorar o manejo da irrigação da soja cultivada na região do Cerrado brasileiro por meio da melhoria de métodos de estimativa da evaporação e evapotranspiração atual da cultura.
Em algumas condições, é possível reduzir a irrigação sem reduzir a produtividade. Visando ao aumento de produtividade de uso de água, é fundamental entender, principalmente para as novas variedades de soja, em que magnitude o déficit de água no solo influencia as características da planta e sua produtividade. Outro ponto a ser considerado, quando se trabalha com a agricultura irrigada, seja com irrigação total ou com déficit, são os fatores que podem influenciar no seu crescimento e na fenologia11.
Os resultados obtidos indicaram que a aplicação de déficit de água no solo de 80 a 100% da água disponível, quando comparada à aplicação de déficit de 0 a 20%, reduziu pela metade, de forma geral, a altura média da planta, a profundidade do sistema radicular, o índice de área foliar e o máximo percentual de cobertura do solo para o inverno. Tanto no inverno quanto no verão, mesmo sem restrição hídrica, recomenda-se aplicar déficit de água no solo de 20 a 40%, sem queda de produtividade. No verão, em situações de restrição hídrica, pode-se impor à soja um déficit de água no solo de 60 a 80%, com redução da produtividade da ordem de 30%.
A avalição do desempenho de diferentes concepções matemáticas para estimativa da evapotranspiração atual de uma nova cultivar de soja (BRS 7581RR) submetida a diferentes condições de déficit hídrico indicou que, no experimento de inverno, o modelo FAO56 Dual12 foi o que apresentou o melhor desempenho na estimativa da evapotranspiração atual da cultura da soja para a maioria dos tratamentos. Na sequência, o modelo de Jensen e Heermann13, seguido pelo modelo AquaCrop14, apresentaram os melhores desempenhos.
Uma forma de se estimar a Es é por meio de microlisímetros15. No entanto, a área e a altura do microlisímetro podem impactar na estimativa dessa variável. Ao se estimar a Es, em função do secamento e da porcentagem de cobertura do solo, verificou-se que para estudos que pretendam medir a evaporação acumulada durante períodos maiores que cinco dias, recomenda-se utilizar microlisímetros de 200 ou 300 mm de altura. Os modelos desenvolvidos para calcular a Es diária, durante os cinco primeiros dias após a irrigação para diferentes percentuais de cobertura, apresentaram desempenho satisfatório. Os modelos desenvolvidos que calculam a Es diária durante a fase 1 de evaporação da água do solo16, para todos os tratamentos de forma separada, apresentaram desempenho satisfatório.
Os resultados do estudo reforçam a importância do aprimoramento dos modelos matemáticos desenvolvidos para o manejo da irrigação. Esses modelos contribuem para a melhorar a produtividade de uso da água, ou seja, possibilitam manter, e em alguns casos até aumentar, a produtividade das culturas, o que vem ao encontro das políticas de segurança alimentar, e reduzir a demanda de água azul17, em consonância com as políticas de segurança hídrica.
Mais informações sobre o estudo da Embrapa e da UFV podem ser obtidas nos seguintes artigos científicos:
ALVES, ÉLVIS DA S.; Rodrigues, Lineu N.; CUNHA, FERNANDO F.; FARIAS, DIEGO B.S. Evaluation of models to estimate the actual evapotranspiration of soybean crop subjected to different water deficit conditions. ANAIS DA ACADEMIA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS, v. 93, p. 2-16, 2021 (DOI 10.1590/0001-3765202120201801). Disponível em: https://www.scielo.br/j/aabc/a/HhFVSHVgMR6FzmBnVFKjfDM/?lang=en
ALVES, E. S.; Lineu Neiva Rodrigues; OLIVEIRA, R. A.; LORENA, D. R. Water deficit on the growth and yield of irrigated soybean in the Brazilian Cerrado region. Revista Brasileira de Engenharia Agricola e Ambiental, v. 25, p. 750-757, 2021 (DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1807-1929/agriambi.v25n11p750-757). Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbeaa/a/Czt6xq9q33yBpyPDs9dpHpG/?lang=en
ALVES, E. S.; Lineu Neiva Rodrigues. Improving the estimation of soil water evaporation based on days after wetting. Jounal of Agronomy and crop science, p. 1-12, 2022 (DOI: 10.1111/jac.12614). Disponível em: https://onlinelibrary.wiley.com/doi/abs/10.1111/jac.12614
Notas
- 1 CONAB. Conab – Safra Brasileira de Grãos, V. 7 – SAFRA 2019/20. Disponível em: https://www.conab.gov.br/info-agro/safras/graos. Acesso em: 5 ago. 2020.
- 2 AGROSATÉLITE, ABIOVE. Análise geoespacial da dinâmica da soja no bioma Cerrado: 2014 a 2017. Florianópolis, SC, 2018.
- 3 INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Censo agropecuário. Rio de Janeiro: IBGE, 2017. Disponível em: https://censos.ibge.gov.br/agro/2017/. Acesso em 02 jul. 2020.
- 4 SILVA, E.H.F.M.; GONCALVES, A.O.; PEREIRA, R.A.; FATTORI JUNIOR, I.M.; SOBENKO, L.R.; MARIN, F.R. Soybean irrigation requirements and canopy-atmosphere coupling in Southern Brazil. Agricultural Water Management, 218, 1-7, 2019.
- 5 BRASIL. Análise territorial para o desenvolvimento da agricultura irrigada no Brasil. Brasília: MI, 2014.
- 6 ALTHOFF, D.; RODRIGUES, L. N. The expansion of center-pivot irrigation in the Cerrado Biome. IRRIGA, v. 1, n. 1, p. 56–61, 2019.
- 7 DOORENBOS, J.; PRUITT, W. O. Crop Water Requirements. FAO Irrigation and Drainage Paper 24. Roma, Italy: Food and Agriculture Organization of the United Nations, 1977.
- 8 RAZ-YASEEF, N.; ROTENBERG, E.; YAKIR, D. Effects of spatial variations in soil evaporation caused by tree shading on water flux partitioning in a semi-arid pine forest. Agricultural and Forest Meteorology, v. 150, n. 3, p. 454–462, 15 mar. 2010.
- 9 KLOCKE, N. L.; HEERMANN, D. F.; DUKE, H. R. Measurement of evaporation and transportation with lysimeters. Transactions of the ASAE, v. 28, n. 1, p. 183– 0189, 1985.
- 10 RAZ-YASEEF, N.; ROTENBERG, E.; YAKIR, D. Effects of spatial variations in soil evaporation caused by tree shading on water flux partitioning in a semi-arid pine forest. Agricultural and Forest Meteorology, v. 150, n. 3, p. 454–462, 15 mar. 2010.
- 11 Desenvolvimento da planta ao longo de suas diferentes etapas: germinação, emergência, crescimento e desenvolvimento vegetativo, florescimento, frutificação, formação das sementes e maturação.
- 12 ALLEN, R. G. et al. Crop Evapotranspiration – Guidelines for Computing Crop Water Requirements. FAO Irrigation and drainage paper 56. Roma, Italy: Food and Agriculture Organization of the United Nations, 1998.
- 13 JENSEN, M. E.; HEERMANN, D. F. Meteorological approaches to irrigation scheduling. 1970.
- 14 HSIAO, T.C.; HENG, L.; STEDUTO, P.; ROJAS‐LARA, B.; RAES, D.; FERERES, E. AquaCrop – The FAO crop model to simulate yield response to water: III. Parameterization and testing for maize. Agronomy Journal, v. 101, n. 3, p. 448–459, 2009.
- 15 Estrutura utilizada para medir a evaporação direta da água do solo.
- 16 Fase na qual a taxa de evaporação é governada predominantemente pela demanda atmosférica.
- 17 Água de rios e aquíferos que podem ser utilizadas para a irrigação.
Fonte: Embrapa