Por: Peter Rembischevski, MSc. Doutorando da Faculdade de Ciências da Saúde (FS/Unb)
Tudo na vida envolve riscos, das atividades mais banais de nossa rotina às mais complexas; viver é correr riscos. Mas também envolve benefícios, os quais são sempre ponderados com os riscos, consciente ou inconscientemente, em nossas tomadas de decisão. No mundo moderno os riscos são cada vez mais onipresentes, e ainda estamos aprendendo a conviver com eles. Não por acaso teve tanta repercussão o termo “Sociedade de Risco”, cunhado pelo sociólogo alemão Ulrich Beck em meados dos anos 80 para se referir aos novos riscos gerados na era da modernidade industrial. Particular ênfase foi dada aos riscos decorrentes da radiação e dos poluentes químicos ambientais, referidos por ele como invisíveis, incalculáveis e globais.
Embora nenhum risco possa ser avaliado sem o conhecimento prévio dos perigos subjacentes, o fato é que os riscos, e não os perigos, é que são avaliados para todas as coisas. Não se pode ignorar o risco de atropelamento quando se atravessa a rua com o semáforo verde para o tráfego ou uma via expressa bem debaixo da passarela. Mas esse risco é o mesmo na “hora do rush” e às duas da madrugada? Certamente não. O risco de atropelamento é menor quando o fluxo de veículos é baixo, como de madrugada, mas nesse período outros riscos tornam-se mais importantes, como de assaltos e coisas piores. Isso é avaliação do risco, tendo sido os perigos devidamente identificados e caracterizados, juntamente com a possibilidade de se expor a esses perigos. O tempo todo estamos avaliando riscos, às vezes sem se dar conta. E o fazemos não só ante os benefícios esperados, mas também aos outros riscos que se projetam, a depender da opção escolhida.
No final de janeiro deste ano foi divulgado pelo Inmetro o relatório dos acidentes de consumo notificados no Brasil em 2018, que ranqueou o fogão em primeiro lugar com 15% dos registros, seguido de escada, fósforo, pneu e colchão. A lista é longa e inclui brinquedo, bicicleta e até box de banho. Embora a maioria tenha sido de baixa gravidade, alguns casos graves foram também registrados, como amputações (3%).
Se seguirmos o critério do perigo, boa parte dos utensílios cotidianos deveriam ser proibidos. Ninguém duvida que o fogo, por exemplo, pode ser extremamente perigoso, mas não se cogita a proibição de fogão ou fósforos por causa disso. Tampouco as escadas, bicicletas, automóveis e essencialmente todas as tecnologias e produtos da atividade humana. O que se faz é aprimorar os mecanismos de segurança e reforçar os instrumentos regulatórios de controle no sentido de torná-los cada vez mais seguros, minimizando os riscos, cientes de que não existe ‘risco zero’, aliado a uma boa estratégia de comunicação e devida orientação à população quanto aos riscos envolvidos. Assim, a necessária convivência com os riscos do mundo moderno forçou o desenvolvimento de métodos para sua avaliação, gerenciamento e comunicação, que são os três pilares do processo conhecido como análise do risco. Esse racional naturalmente se aplica aos riscos decorrentes do uso de produtos e serviços sujeitos ao regime de vigilância sanitária, como os medicamentos, cosméticos e pesticidas.
Ao se avaliar se um pesticida pode ou não ser/permanecer registrado, e caso sim, em que condições, tal avaliação só será completa se for levado em consideração o risco que representa, o qual dependerá não somente de sua toxicidade (perigo), propriedade inerente da substância, mas também da exposição de agricultores, populações próximas às áreas agrícolas e população geral que consome alimentos tratados com esses produtos. O processo de avaliação do risco é considerado padrão ouro pelas principais autoridades regulatórias internacionais. Por exemplo, o Acordo sobre Medidas Sanitárias e Fitossanitárias (SPS), do qual o Brasil é signatário, recomenda expressamente a adoção da avaliação do risco como critério para rechaço de qualquer carga de alimento que contenha resíduos de pesticidas ou contaminantes químicos que possam colocar em risco a saúde da população.
Porém, nem todos os pesticidas são submetidos ao procedimento de avaliação do risco em alguns países, incluindo o Brasil. A Lei n. 7.802, de 11 de julho de 1989, comumente chamada de “Lei dos Agrotóxicos”, define em seu Art. 3º, § 6º, alguns critérios proibitivos de registro, com base no perigo representado por determinados efeitos crônicos graves à saúde, mas não na avaliação do risco. É preciso reconhecer que à época, a abordagem baseada em perigo era o melhor que se podia fazer no Brasil, já que o paradigma do processo de avaliação de risco, que considera também a exposição, tinha sido estabelecido de maneira sistemática poucos anos antes pela National Research Council dos Estados Unidos.
Por outro lado, existe consenso de que substâncias carcinógenas genotóxicas não devam ser registradas, já que possuem mecanismo de ação que envolve dano ao DNA. Todavia, substâncias carcinogênicas que induzem esse efeito por via não genotóxica apresentam um nível de exposição segura, ou seja, uma dose abaixo da qual nenhum efeito adverso à saúde foi observado (no-observed-adverse-effect level, NOAEL), e portanto devem ser submetidas ao processo de avaliação do risco.
Definitivamente, é preciso reconhecer o fato de que não existem substâncias químicas ideais, naturais ou sintéticas, que não impliquem algum risco à saúde ou ao meio ambiente. A avaliação do risco possibilita uma decisão mais robusta e cientificamente embasada do que se considerarmos simplesmente a toxicidade (perigo) do agente, pois leva em consideração, de forma integrada, os estudos de toxicidade e os dados (ou predição) de exposição, configurando-se no procedimento que faz o melhor uso das informações disponíveis. Seja para atravessar a rua, ferver água na panela, usar medicamentos ou aplicar pesticidas na lavoura.
Fonte: Faculdade de Ciências da Saúde da Universidade de Brasilia
LITERATURA
Beck, U. Risk Society: towards a new modernity. London: Sage Publications, 1992. 260 p. Do original Risikogesellschaft: auf dem weg in eine andere moderne, 1986
Hsu, C.H.; Stedeford, T. (Eds.). Cancer Risk Assessment – Chemical Carcinogenesis, Hazard Evaluation and Risk Quantification. New York: John Wiley & Sons, Inc.
INMETRO. Sistema Inmetro de Monitoramento de Acidentes de Consumo(Sinmac) – http://inmetro.gov.br/consumidor/pdf/sinmac-2018.pdf
NRC (National Research Council). 1983. Risk Assessment in the Federal Government: Managing the Process. National Academic Press, Washington, D.C.,8 192p. https://www.nap.edu/catalog/366/risk-assessment-in-the-federal-government-managing-the-process