Em entrevista exclusiva à Federação Brasileira de Plantio Direto e Irrigação – FEBRAPDP, os pesquisadores e professores Cornélio Alberto Zolin, da Embrapa Agrossilvipastoril; Frederico Terra de Almeida, da UFMT; Rodrigo M. Sánchez-Román, da UNESP, e Ciro Magalhães também da Embrapa Agrossilvipastoril fazem uma análise sobre o atual contexto da gestão hídrica no Brasil e seus principais desafios em um cenário que envolve a sociedade como um todo. Produtores, pesquisadores, sociedade, empresas e governo são partes indissociáveis do processo.

FEBRAPDP – Quando pensamos em gestão hídrica como um desafio, a primeira coisa que vem à mente é a imagem do produtor trabalhando para produzir e tentando equilibrar o uso dos recursos hídricos, ou das pessoas da cidade evitando, por exemplo, lavar as calçadas de suas casas. Mas o desafio vai bem além disso, não? Qual a extensão efetiva desse desafio para o país?

Entrevistados – A gestão hídrica é um desafio complexo, dinâmico e multifacetado, onde as dimensões econômicas, sociais e ambientais estão intimamente intrincadas. O agricultor, no setor rural, e as demais pessoas, no contexto urbano, são alguns dos atores/usuários da água. O empenho desses atores na busca do uso mais racional e eficiente dos recursos hídricos é extremamente importante. Contudo, a complexidade na gestão dos recursos hídricos perpassa, de uma forma mais ampla, pela busca do equilíbrio entre a oferta e demanda (quantitativa e qualitativa) dos recursos hídricos, considerando os diferentes setores usuários e as peculiaridades de cada região e bacia hidrográfica. Isso certamente não é tarefa fácil e demanda grande esforço e tempo dos agentes públicos, privados e da sociedade organizada para uma reflexão e amadurecimento dos diferentes atores.

FEBRAPDP – Em seu aspecto macro, esse desafio passa pela execução de um projeto mais amplo para a gestão hídrica no Brasil; enquanto que em seu aspecto micro está mais ligado à questão operacional mesmo. Mas antes de chegarmos ao produtor em si e em sua responsabilidade, qual o nível de engajamento geral da sociedade na equalização desse desafio?

Entrevistados – Com a criação da Política Nacional de Recursos Hídricos (Lei 9.433) em 1997 e da Agência Nacional de Águas (ANA), em 2000, o Brasil deu um salto extremamente significativo na gestão dos Recursos Hídricos, no qual se optou por deixar um sistema de gestão relativamente fragmentado, do ponto de vista institucional, e adotar um sistema de governança das águas que fosse integrado, descentralizado e participativo. Nessa nova conformação de gestão, a sociedade civil organizada é parte sine qua non, pois é chamada a participar ativamente dos processos de negociação entre os diversos agentes públicos e usuários dos recursos hídricos. Nesse sentido, vários exemplos que temos ao redor do país indicam um crescente engajamento e amadurecimento da sociedade com a questão da gestão dos Recursos Hídricos.

FEBRAPDP – É possível detalhar quais os desafios no aspecto macro e fazer uma fotografia do momento atual de como estão sendo tocados?

Entrevistados – Um detalhamento dos desafios carece de grande reflexão, por diversos atores, das realidades regionais, que são dramaticamente diferentes no território brasileiro. De uma forma resumida, podemos destacar alguns aspectos que constituem desafios em um contexto macro, tais como:

1) O aprimoramento da legislação/regulamentos sobre a água, considerando as experiências sobre as peculiaridades regionais (condições de seca, excesso de chuvas, contaminação e conflitos pelo uso da água, etc.);

2) A ampliação e integração das informações e da gestão sobre disponibilidade hídrica superficial e subterrânea;

3) A coordenação e integração entre as políticas de recursos hídricos, saneamento, agropecuária e ambiente, considerando os diferentes setores usuários e;

4) A capacitação de profissionais dos diferentes setores usuários da água para atuarem na gestão integrada dos recursos hídricos.

Em relação à “fotografia” do momento atual, é possível constatar um amplo e considerável esforço por parte de instituições como a Agência Nacional de Águas (ANA), as Universidades e Empresas de pesquisa no que tange ao enfrentamento de tais desafios, incluindo a análise frequente das políticas/regulamentações, desenvolvimento de pesquisas e capacitação constante de profissionais. A sociedade civil também é parte inerente e atuante desse processo. Os fóruns de discussão sobre os diferentes desafios e problemas para a gestão dos recursos hídricos são os Comitês de Bacia, em que os representantes do poder público, os usuários da água e sociedade civil realizam discussões e negociam, de forma participativa e democrática, os reais e diferentes interesses sobre os usos das águas das bacias hidrográficas, subsidiando a elaboração das políticas para gestão das bacias e buscando o equilíbrio entre oferta-demanda-qualidade da água.

FEBRAPDP – Políticas públicas, regulamentações, fiscalização, consumo, meio ambiente e pesquisa remam na mesma direção?

Entrevistados – Existe um grande esforço nesse sentido. A direção é uma só, contudo, devido à complexidade e dinamismo do processo de gestão de recursos hídricos, existem descompassos, naturais e inerentes ao processo. Façamos uma reflexão, usando como exemplo uma bacia hidrográfica hipotética. Pensemos em uma situação de expansão da demanda pelos diferentes setores usuários (agricultura, indústria, abastecimento humano, etc.) nesta bacia. Para o início de novas atividades demandantes dos recursos hídricos, os pedidos de outorga precisam ser avaliados pelo órgão competente, que frequentemente possui limitações sobre a real disponibilidade hídrica na bacia, que, por sua vez, decorre da carência de informações “hidrometeorológicas” e também da fiscalização sobre a retiradas e lançamentos. Considerando que nesta bacia não esteja constituído um comitê de bacia para a discussão e implantação dos instrumentos da Política Nacional de Recursos Hídricos, não teremos as ferramentas legais para planejar e arbitrar questões sobre a outorga, plano de bacias, etc. Neste contexto a pesquisa busca desenvolver técnicas e projetos que auxiliem na melhoraria das análises sobre a disponibilidade e demanda hídrica, bem como melhorar a rede de monitoramento. No entanto, isso demanda tempo e o empreendimento solicitante de outorga demanda agilidade. Esse é um exemplo de descompasso. Olhemos agora para a fiscalização, esta sem dúvida tem melhorado, mas ainda temos grande carência nesse aspecto, que perpassa pelo quadro reduzido do corpo técnico para tal finalidade, dificultando a identificação das extrações ilegais, associado à extensão dos territórios, dentre outros. Por fim, uma vez implantado os comitês de bacias e os instrumentos legais, conjuntamente com a participação do poder público, dos usuários da água e da sociedade civil, tais descompassos tendem a diminuir com o tempo e com o amadurecimento do processo de gestão, pois os problemas e prioridades da bacia ficam mais evidentes e as ações a serem tomadas também.

Importante destacar que após a implantação dos Comitês de Bacias Hidrográficas, é imprescindível que estes tenham apoio para que possam “amadurecer” e, em especial, promover discussões sobre os instrumentos da Politicas Estaduais de Recursos Hídricos, que tem base na Lei 9433;1997, em especial, a elaboração do Plano de Bacias Hidrográficas, e sua consequente execução.

FEBRAPDP – A cadeia produtiva, em especial o produtor rural, tem a real dimensão do seu papel, do que é de sua responsabilidade e o que está além de suas responsabilidades?

Entrevistados – Mais uma vez as realidades são dramaticamente diferentes nas regiões brasileiras. Há uma tendência de que em bacias com conflitos de uso da água estabelecidos ocorra maior engajamento e negociação por parte dos setores usuários, incluindo o produtor rural. De forma geral, é possível verificar crescente compreensão por parte dos produtores rurais em relação a sua crucial importância para a gestão dos recursos hídricos. A infiltração da água no solo e manutenção dela na bacia hidrográfica depende fundamentalmente das ações dos produtores, por meio da conservação de áreas estratégicas para a infiltração, adoção de práticas de manejo conservacionistas, dentre outras. Neste sentido, o produtor rural também está entendendo o seu papel de provedor de serviços ambientais hídricos e do solo, além da produção de alimentos.

Importante destacar também que a sociedade pode desempenhar papel crucial, seja por meio dos Comitês de Bacias Hidrográficas, quer pelos Conselhos Estaduais e Federal de Recursos Hídricos, ou outras instâncias, no que se refere às políticas de uso e conservação das águas, na prospecção de orçamentos que possam subsidiar a elaboração dos Planos de Bacias Hidrográficas (pelos comitês), e então possibilitar maior atuação de toda a sociedade na gestão integrada e participativa dos recursos hídricos.

FEBRAPDP – No aspecto micro, dentro da propriedade, onde o produtor tem acertado e errado? O que precisa ser aprimorado? E como as informações estruturantes estão chegando a ele?

Entrevistados – A adoção de práticas de manejo conservacionista do solo, curvas de nível, barraginhas, plantio direto ou similar, preservação de Áreas de Preservação Permanente (APPs), conservação das áreas de mata em regiões declivosas e manejo racional da irrigação, sem dúvida, são pontos que merecem destaque e que são latentes no dia a dia do produtor, resultando em benefício ambientais e econômicos diretos para a propriedade. Negligenciar tais ações é temerário e pode gerar prejuízos importantes na propriedade rural. Do ponto de vista de aprimoramento, é importante destacar a necessidade do entendimento da propriedade de forma integrada, onde as práticas de conservação são elementos indispensáveis.

No que se refere às informações estruturantes, estas ainda carecem de melhor canal para chegar ao produtor rural. Não raras são as vezes em que o produtor rural discorre sobre determinadas práticas de conservação do solo e da água como uma penalidade e não como um benefício geral de médio-longo tempo para si e para o ambiente. Nesse sentido, uma melhor interlocução entre órgãos fiscalizadores, agências de crédito, instituições de pesquisa, e de extensão, ou outras instituições, como, por exemplo, as Secretarias de Meio Ambiente e/ou de Agricultura dos municípios, que possam estar mais envolvidas com os Fóruns de discussões dos recursos hídricos, como os Comitês de Bacias Hidrográficas, têm papel muito importante na interlocução direta com o produtor. Assim é possível transmitir a ele os benefícios que diferentes práticas de conservação de água e solo, e outras ações, podem trazer para a melhoria da quantidade e qualidade dos recursos hídricos à sua terra e à região.

FEBRAPDP – Os desafios são parte do caminho para se chegar a algum lugar; nesse caso, um modelo sustentável e responsável de gestão hídrica. Como seria esse “lugar”?

Entrevistados – Parafraseando o ex-ministro Ayres Britto, “na gestão de recursos hídricos não se vence por nocaute, mas por acúmulo de pontos”. A observação e busca de entendimento das problemáticas (que são muitas) na gestão dos recursos hídricos, bem como dos instrumentos de solução/mediação destas, é um processo de construção e compreensão gradativo por parte dos diferentes atores (poder público, usuários da água e sociedade civil). É importante mencionar que a Política Nacional de Recursos Hídricos (Lei 9.433), bastante moderna, vale destacar, estabeleceu as bases/pilares para atingirmos um modelo sustentável e responsável de gestão hídrica. Cabe a nós enquanto sociedade, poder público e usuários da água trilhar e aperfeiçoar esse caminho. Dessa forma, o exercício da cidadania por meio da realização de discussões aprofundadas, técnicas, e por vezes até politizadas, respeitando as diferenças e buscando um senso comum na gestão integrada e participativa dos Recursos Hídricos, ajudarão muito o aperfeiçoamento dessa construção. Por fim, o lugar em que se almeja chegar contempla, dentre outros aspectos, o equilíbrio entre a oferta e demanda hídrica em quantidade e qualidade, a conservação ambiental e o acesso à água para todos.

Um pouco mais sobre os entrevistados
Dr. Cornélio Alberto Zolin é pesquisador da Embrapa Agrossilvipastoril, em Sinop-MT, onde atua no tema Manejo, Uso e Conservação dos Recursos Hídricos – E-mail: cornelio.zolin@embrapa.br

Dr. Frederico Terra de Almeida é professor Adjunto da Universidade Federal de Mato Grosso, Campus de Sinop-MT, onde atua no tema Hidrologia, Manejo de Bacias Hidrográficas, Erosão e Sedimentação – E-mail: fredterra@ufmt.br

Dr. Rodrigo M. Sánchez-Román é professor do Programa de Pós-graduação em Irrigação e Drenagem da Faculdade de Ciências Agronômicas/UNESP, Dep. de Engenharia Rural, Botucatu, SP – E-mail: rodrigo.roman@unesp.br

Dr. Ciro Augusto de Souza Magalhães é pesquisador da Embrapa Agrossilvipastoril, em Sinop-MT, onde atua no tema Intensificação Sustentável e Qualidade do Solo – E-mail: ciro.magalhaes@embrapa.br

Fonte: FEBRAPDP – Federação Brasileira de Plantio Direto e Irrigação

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